Introdução: sobre mares e travessias
O espaço expositivo é em si um espaço educativo, caracterizado como espaço de educação não formal que atua focado nos processos de mediação cultural. Na mediação, o diálogo do público com a obra ou o artista visitado é mediado pelo educador, cuja função é criar ambientes propícios à construção do conhecimento e ao questionamento diante da obra de arte.
A educação não formal traz como desafio a criação de ambientes educativos diferenciados da escola, onde os conhecimentos prévios dos visitantes e sua cultura devem ser a base para o diálogo com o educador e as aprendizagens – assim mesmo no plural, pois compreendemos as possibilidades de aprender como diversas, pessoais e mutáveis.
No que tange especificamente ao museu, talvez fosse preciso rever a própria forma como o museu se apresenta e apresenta sua coleção com o intuito de educar. A distância mantida entre o público e a obra visitada é traduzida em sua relação com essa e com todo o espaço.
Ao longo da história da civilização, a Arte foi concebida como um produto separado da experiência humana, como se uma escultura ou uma pintura, por exemplo, fossem Arte apenas pelo uso das técnicas. O que aconteceu? O que consagramos como Arte ficou relegado aos museus e galerias, distante da experiência e, portanto, do corpo do espectador. Com essa distância, “o impulso incontrolável de buscar experiências prazerosas em si encontra válvulas de escape que o meio cotidiano proporciona” (DEWEY, 2010). Assim, passamos a procurar Arte no cotidiano, nos meios de comunicação, nos objetos comuns, nas experiências corriqueiras e, por tais coisas não estarem encerradas nos museus e galerias, é comum também que não as consideremos “obras de arte de fato”.
Um bom exemplo do que estamos falando é o encontro do menino Diego com o mar, contado por Eduardo Galeano no conto A Função da Arte/1:
A função da arte/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para
que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar,estava do
outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai
enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a
imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de
beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai:
— Me ajuda a olhar!
(GALEANO, 1991, p.12)
Diego nunca tinha visto o mar, a experiência nova lhe tocou os sentidos e o despertou para uma ação que, ainda que vidente1 , ele ainda não havia se dado conta: é preciso aprender a olhar! O que Diego pede ao pai é que o ensine a ver tamanha grandeza: por onde começar? É possível ver “tudo”? É possível tocar? Entrar? Sentir? O pai, nessas condições, faria então o papel de mediador. É preciso mediar a experiência nova, conduzi-la à sua consecução, para que seja uma experiência estética, como destaca John Dewey em seu livro “Arte como experiência”, principal referência teórica deste artigo.
A Arte Contemporânea retomou a questão central sobre a relação entre Arte x Experiência; ela trouxe a possibilidade de retomarmos a discussão sobre a arte ir além do produto em si, estabelecendo-se na relação com a experiência humana. A experiência é capaz de nos modificar e modificar também nossa relação com o meio continuamente. A experiência estética, no nosso caso tida em contato com a obra de arte, nos afeta não só cognitivamente, mas também como troca sensorial entre a obra e o meio.
Temos por objetivo, então, discorrer sobre a mediação como geradora de experiência estética a partir de provocações sensoriais dentro do museu de arte. A mediação como ação criadora tem o propósito da travessia entre os mares da Educação e da Arte, fazendo da ação educativa uma proposta artística e, de sua feição criadora, um viés educativo. Para tanto, utilizaremos como metáfora da experiência o conto de Eduardo Galeano, a partir do qual compreendemos o mar como obra de arte, a relação com esse como a experiência, o menino como o público e o pai como o educador que conduz ao mergulho.
Compreendemos ainda que a experiência estética só se dá em desequilíbrio, em meio ao que chamaremos de tempestade. São os deslocamentos em alto-mar os responsáveis pelo bom marinheiro. Assim, como “aprendiz do olhar”, Diego entra no mar até então desconhecido e precisa da mediação de um bom marinheiro, de alguém que conheça o mar e saiba não somente como olhar, mas como sentir essa travessia da experiência.
Primeiros olhares para o mar: a praia e a experiência estética
A experiência acontece na relação que o ser humano estabelece com o meio em que vive e, a partir da qual passa a conhecê-lo, modifica-lo e ser modificado por ele, em um processo contínuo. Jorge Larrosa (2002) questiona o sentido de “experiência” a partir do significado da palavra em várias línguas. Em português, inglês e italiano, experiência pode ser traduzida como “o que nos acontece”; já em espanhol, “o que nos passa”; e, em francês, “o que nos chega”. Assim, antes de tudo, a experiência exige do sujeito que a vivencia abrir-se para o novo, sentir a experiência.
O sujeito da experiência se relaciona tanto com o espaço onde tem lugar os acontecimentos, quanto se mostra como um território sensível de passagem dessa experiência, definido por Larrosa como “[...] um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo que faz experiência dele se apodera” (2002, p. 25). O sujeito da experiência está entregue às relações.
Para que algo nos toque, nos chegue ou nos aconteça, é preciso interromper os automatismos e transferirmo-nos para o “aqui e agora”. É esse rompimento que nos gera estranhamento e nos traz para o presente. Voltando ao texto de Galeano, quando Diego conhece o mar, essa é uma situação que quebra o seu cotidiano, é tudo novo ali e Diego precisa do pai para olhar.
Nosso primeiro momento é a chegada à praia. Tal como a Diego, o mar nos encanta em sua imensidão. O primeiro olhar se revela ainda deseducado: por onde começar? Como ensinar o olho a olhar? Aos poucos percebemos que, para além do que está posto à nossa frente, nossos pés pousam numa areia quente, fina, que gruda um pouco nos dedos. O sol queima a pele e o barulho das ondas, antes não conhecido, compõe o cenário. O cheiro salgado do mar chega às nossas narinas e o vento forte traz grãos de areia salgada para os lábios. De repente, assim como Diego, nos damos conta de que, além de aprendermos a olhar o mar, precisamos também senti-lo. O mar não está descontextualizado da praia ou da própria experiência sensorial de Diego. A obra de arte não está descontextualizada do espaço expositivo e de suas questões. Nossa experiência de navegação pelas águas da mediação sensorial começa nessa praia.
O texto completo está no link: http://anpap.org.br/anais/2016/comites/ceav/sara_cruz.pdf
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